domingo, setembro 26, 2010

Folhas Caducas

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Foto: Bibiana Xausa Bosak / Barcelona, 2006


E esse beijo que tanto demora a acontecer, dá tempo pra pensar. A cidade, na primavera, floresce, é uma boa companhia para os solitários. 

A espera faz pensar nos medos. Faz lembrar dos traumas. O café do teatro fornece encontros inesperados e o trabalho serve para que não falte assunto às conversas amenas. Os eventos da madrugada trazem certo desconforto: tantas pessoas desconhecidas, tantos universos sem interseções comuns. 

Mas, o mais estranho é confrontar-se com versões antigas de si refletidas nos olhos de antigos amigos. Como explicar todas as atualizações? Como fazer entender que alguns bugs foram corrigidos e que outros tantos features já nem existem mais? Às vezes parece melhor começar tudo do zero. 

Mas, então, vem a espera do beijo, a lembrança dos traumas e o medo dos recomeços. Bem, o medo não é bem dos recomeços, é mesmo dos refinais. Ah... mas como doem, como cansam, os refinais. E então é, de novo, tempo de atualizar a versão, corrigir os bugs, alterar os features.

É o início da primavera fazendo lembrar que renascer, exige, de certa forma, remorrer. Este é o ciclo perene das folhas caducas... 


quarta-feira, setembro 22, 2010

Me Diceram

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Uma vez me disseram que ‘disseram’ escreve com dois ésses. Também me disseram que eu produzia melhores artistas do que obras e que eu deveria, primeiro, pisar com os pés nus no chão para saber se estava frio ou quente antes de assumir que o piso estava frio. Me disseram que eu fazia as coisas sem prestar atenção e que depois não lapidava. Me disseram que eu deveria prestar mais atenção nas coisas. Quem me disse isso, certamente, não estava prestando atenção em mim... Me analisou tanto que esqueceu de perceber a coisa mais importante: que eu presto atenção nas coisas, muita atenção, em (quase) todas as coisas. 

É bem verdade que meu carro é uma bagunça e que eu não dobro as roupas e coloco-as de volta no armário. É verdade que eu, muitas vezes, deixo a toalha molhada em cima da cama sem me dar conta e que minha ortografia é tão ruim que me renderia o direito de voltar à primeira série. Mas, se eu escrever diceram, alguém vai deixar de entender o que eu estava querendo dizer?

Não, eu não estava preocupada com a toalha molhada. Estava pensando em que roupa ficaria mais bonita, qual seria o melhor lugar para irmos, se a rua estaria cheia e se acharíamos lugar para estacionar. Estava reparando no movimento do músculo do teu antebraço enquanto tu segura o cigarro e tentando lembrar o nome do artista da imagem que estavas vendo. Eu estava pensando se tu ia gostar do meu perfume novo e, não, não reparei na toalha. Será que isto é suficiente para dizer que eu não presto atenção? Será que era eu que não estava prestando atenção? 

É verdade que raramente escrevo um texto pela segunda vez. Sabe por quê? Porque eu reparo nas vírgulas. Todos os textos de todos os livros que leio, leio com uma caneta na mão. Sublinho as frases, marco o que gosto com um ponto de exclamação, dobro a orelha da página para saber onde estava aquilo que eu gostei, repito várias vezes na minha cabeça aquela uma frase, daquele um autor e relaciono a frase com as mais diversas coisas que já vi, ouvi e senti. E então, quando eu escrevo essas linhas como quem psicografa, é porque eu não prestei atenção? 

Então de nada valem os 80 anos de Picasso se o gato for desenhado em 10 minutos? Será que você sabe do que eu estou falando ou vai achar que eu não fiz sentido? Se for esse o caso, te aconselho a olhar melhor. Olha mais. Preste mais atenção. O perfume novo não justifica o erro de ortografia e o nome daquele artista que eu não lembro não faz secar mais rápido o colchão molhado pela toalha. É... talvez eu não preste atenção nas coisas. Mas, sabe do que mais? 

Vamos de taxi porque hoje vai ter jogo e a cidade vai lotar e vamos pagar tanto no taxi quanto pagaríamos em estacionamento; e, como tu disse que estavas com fome, que tal irmos naquele lugar que tem lasanha? Dai podemos pedir aquele vinho que tu gostou da outra vez; e, já que vamos de taxi, vou de salto e com o vestido preto e já aproveito para estrear o perfume; essa imagem que entrou agora parece aquela que vimos na palestra daquele artista; o vizinho não para de gritar e isso me lembra que temos que dar comida pro cachorro; e a tua cara de brabo quando eu jogo a toalha e a maneira como o músculo do teu antebraço se mexe quando tu pega ela pra tirar da cama me encantam. Mas não, eu não devia estar prestando atenção.

Como é mesmo que se escreve ‘mexer’? 

segunda-feira, setembro 13, 2010

Conversas de Poetas

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Há tempos escrevi um poema, inspirada por um final de semana incrível e pelas rimas de Elisa Lucinda, me valendo da ajuda de Mário Quintana. Neste último final de semana, lendo Eduardo Galeano, encontrei uma proza do autor com um título quase igual e a tratar do mesmo tema que eu. Portando, achei que valia, aqui, colocar minha conversa com os poetas, por isso, republico meu poema, o de Quintana e a prosa de Galeano. Me senti parte da literatura. Felicidade.

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Poema a Pequenas Mortes


É  tanta vida
É tanto sonho
Que me explode o peito
E a vontade que dá
É de virar letra
Errada e errante
E viver de pequenas mortes
Em livros de poesia.

Um amigo em um bar me disse:
Sabes como é orgasmo em fracês?
Petite-Mort.
E o que é a vida
Se não viver de pequenas mortes?

Já dizia o poeta
"Todos os poemas são o mesmo poema.
Todos os tragos são o mesmo trago.
Não é de uma vez que se morre..."


E não é.
Se morre a cada instante
E, a cada instante,
Se explode novamente em vida.
Como fênix incandescente
A vida é o exercício do acender de flamas
E do apagar
De chamas.
E viver como letra errante
Morrendo a cada ponto
Num virar de páginas.


Um pequeno morrer a cada estante.
Um grande viver
A cada nova sílaba entrante.
O prazer constante do afogar-se
E pela força soberana da onda,
Tragar-se.

Já que "todos os poemas são o mesmo poema
E todos os tragos são o mesmo trago"
Graças aos deuses!
"Não é de uma vez que se morre.
Todas as horas são horas extremas"




(Une petite mort pour vous tous les jours, Outubro, 19, dois mil e nove, Bibiana)

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PEQUENO POEMA DIDÁTICO

O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!
(Quintana)

Mário Quintana


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Não nos provoca o riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. 

Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntarmo-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.

(Galeano)



Prazeres e o Grito dos Ventos

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O prazer das letras anda me voltando aos olhos e aos dedos.
Acho que é o frio da praia que faz isso com as gentes.
Ouço letras que é pra não ouvir o choro abandonado do vento.

(um dia perdido em setembro, o vento e eu)

Espectador Só

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Certas vezes, na ausência de público, torno-me tia coruja de mim mesma. Daquele tipo de tia que está mais gorda a cada Natal e cada novo gole de vinho lhe faz dizer com mais gosto: "Como cresceu! Ainda ontem trocava suas fraldas...". Em um desses momentos em que estava a ser tia gorda de mim mesma, me apercebi de uma evolução que muito me surpreendeu.

Tenho por costume sonhar acordada, sempre tive. Como que por vício, ou pieguice,  fantasiei acordada romances dignos de cinema. A dificuldade era sair da ilusão. A ajuda externa sempre me foi necessária: mãe, pai, terapeuta, extratos bancários... Todos a me dizer: "Bibiana, acorda! Vamos, isso é realidade. Esquece dessas fantasias". 

Então, dia desses, estava fantasiando outra vez. Foi quando inoportunos personagens da realidade resolveram por aparecer e reaparecer. Surgiu o pai, o chefe, o subordinado, o extrato do banco e até o e-mail enviado. Todos teimosos, invasores da minha fantasia. Fui assim obrigada a tomar providências: de olhos fechados, imaginei a minha fantasia e, em volta dela, criei uma bolha que a separava de todo o resto. Imaginei a bolha a crescer e afastar todos, chefe, extrato, e-mail, para longe e mais longe do meu sonhar. Quando já estavam todos bem longe, jogados flutuando no vácuo que sempre visualizo para exilar os pensamentos que não quero, falei à minha mente, como que ordenando: "Sai realidade, que isto aqui é fantasia". 

E quem diria que a menina que só vivia nas nuvens ia ter um dia que abrir espaço na realidade para sonhar... A tia ficou orgulhosa.

sexta-feira, setembro 10, 2010

Viagens Interestelares

***

Vi um universo com o canto dos olhos - e me encantou.
Há tempos não me sentia assim...

Ao mesmo tempo curiosa, 
Sedenta por ir mais longe, 
Mais fundo, 
Mais dentro,
 Onde as defesas terminam.
E amedrontada, 
De novo uma criança 
Com vergonha de falar na frente dos adultos.
É que é um universo estranho, 
Um desses que não se vê muito aqui por essa dimensão.

Pode ser também a minha miopia
 Me fazendo distorcer as coisas...
Talvez não seja um universo assim, tão cheio de constelações perfeitas,
Mas eu não esperava encontrar coisas assim por aqui,
No pequeno reino de Porto Alegre.

Encontrei vidas do tipo que defino como "full of fullness",
Pessoas com ricos universos particulares e,
Talvez o mais invejavel de tudo, 
Com um riquíssimo universo coletivo.

O único problema de universos desse tipo,
É que eles parecem tão perfeitamente sincrônicos e herméticos,
Que fica difícil imaginar
 Que qualquer cometa
 Consiga passar a integrar sua órbita.

quinta-feira, setembro 09, 2010

21 gramas

***




Terças-feiras, nas minhas regras, é dia de poesia. Às vezes é eufemismo, às vezes, poesia. Em uma dessas tantas, foi poesia. Falávamos sobre os pesos de cada um. 

Falar em pesos me faz lembrar de uma amiga que uma vez, lá do estrangeiro, escreveu que acreditava que a gente engordava para caber na gente. E, então, voltamos aos pesos. Quais são os pesos que nos constroem? De quantos traumas, quantas cicatrizes, quantos quilos se faz nossa essência?

A minha andou variando bastante. Alguns remédios, muitos términos, outros tantos começos fizeram do meu corpo um depósito de histórias. Tantas, que se refletiram em quilos, ora pra mais, ora pra menos. Mas não sou feita de quilos! Minha essência não é feita de causos. Somos todos, em horas diversas, doces, salgados, amargos, ácidos. Em calorias incontáveis, que aquecem, energizam, mas não engordam.

O que engorda é o sobrepeso que nos permitimos carregar. Todas as cargas que não são nossas, mas às quais nos rendemos: os estresses, os desamores, os desafetos, os descontínuos do quotidiano. Encontrar nossa gravidade interna e estabilizar a balança é mera e pura consequência de estabilizar o espírito e não permitir que se deposite em nós mais do que o peso que nos é próprio.

E, então, eu volto às terças-feiras de eufemismos e poesias. Foi quando, em uma dessas, me disseram que não é uma questão de caber na gente, é uma questão de aceitar carregar os pesos: "o único peso que devemos carregar são os 21 gramas. Os 21 gramas da nossa alma. O resto, querida, o resto é sobrepeso".

E assim encerro. O resto, queridos, o resto é sobrepeso. 

(Quinta-feira de escrever em cafés, 09, Setembro, 2010)

segunda-feira, setembro 06, 2010

Pré-Paixões

***



O início de uma paixão é sempre um momento sublime; poderia dizer, quase divino. Mas não é bem no início da paixão, um pouco antes: na pré-paixão. Aquele estágio em que alguém, de alguma forma, fez tocar os sinos e que sentimos que, ao mínimo descuido, num tempo menor que um piscar de olhos, poderíamos nos apaixonar. 

Nessa fase, tão delicada, tão ilusória, na ânsia de nos tornarmos interessáveis a quem tanto nos interessa, acabamos por nos tornar extremamente interessantes: para nós mesmos. Cabelos brilhosos; de novo a vontade por vestir todos os dias a combinação mais bonita que conseguimos encontrar no armário; a simpatia que exala e atinge até o senhor da padaria...

Para praticantes, o retorno à poesia. Para os devotos, o encontro com corpo. Para os humanos, a redescoberta de si: do melhor de si. Aquele que sorri para espalhar o sorriso, aquele que presenteia para externar a ternura que lhe explode, aquele que aceita do mundo o que esse tiver a oferecer e não se frustra caso o mundo ofereça pouco, menos, nada. A pré-paixão busca a si mesma. Enquanto a paixão embriaga-se do outro (e dele depende), a pré-paixão basta-se em si.

Uma saudação budista fala: o deus que está em mim saúda o deus que está em você. E, se este deus que está dentro de mim torna-se melhor assim, então acho que a pré-paixão é um dos estados divinos: o meu deus brilha, o meu deus sorri e, aqui de longe, tenta dizer ao teu deus: olá.

Deveríamos viver todos em constante estado de pré-paixão: emoções ainda todas sob controle, mas já os olhos com o brilho daqueles que antevêem a possibilidade do gozo. Portanto, pré-apaixonem-se. Por uma árvore, por um dia de sol, por uma voz ao telefone, pelas letras de um livro, pelas próximas férias, pelo desafio a seguir. Pré-apaixonem-se, nem que seja por si. 

(dia de ventos, praias e poetas, Setembro, 2010)