quarta-feira, março 29, 2006

Tudo aconteceu de manhã.

Era negro. Absolutamente negro. Olhos verdes. Absolutamente verdes.

Olhava como se já soubesse tudo. Olhava como se fosse impossível esconder-lhe qualquer coisa que fosse.

* * *

Vinha da noite. Acordara a tremer. A bebida ainda não lhe havia saído do corpo.
Seguia a rotina normal. Absolutamente rotina. Sua absolutamente não rotineira, rotina.


Toca o despertador.
Mãos a bater no criado mudo, procurando, no escuro, emudecer aquela coisa infernal a lhe atrapalhar o sono.
Isso era igual em qualquer lugar. Dentro de todo o caos em que vivia o ato de depositar seu mau humor matinal no despertador era uma constante, uma regra na sua vida sem regras.


Achou, com as mãos, o barulho. Considerou ignorar seus compromissos. Já acordada, considerou não acordar. Desligou o despertador. Não conseguiu mais dormir.


Quase uma hora depois, movida pela imensa sede que sempre se segue a uma noite etílica, fez o corajoso ato de levantar-se.

Olhou o relógio. "Será que ainda dá tempo?". Considerou ignorar seus compromissos. "É, ainda dá tempo...".

Seguiu-se de atos banais: Banhar-se, escovar-se, pentear-se, vestir-se. Vestir-se.

Foi a janela sentir o ar.


* * *

Tudo acontece de manhã.

Era negro. Absolutamente negro.
Olhos verdes. Absolutamente verdes.
Olhos verdes que se opunham aos dela.
Olhos negros. Absolutamente negros.
E se encontraram os olhos.


Negro. Estático. Imóvel. Somente aqueles farois verdes a fitá-la eram suficientes. Nem um movimento sequer, somente olhava. E olhava como se já soubesse de tudo. Olhava como se fosse impossível esconder-lhe qualquer coisa que fosse.
Pararam e, durante aqueles dez segundos, o tempo parou. Entenderam-se com perfeição. Distantes por metros sentiram-se como se fossem parte um do outro.


Piscou os olhos em um movimento lento, muito lento e, os olhos fechados faziam dele apenas mais uma imensa e enfeitiçante mancha negra. Voltou a abrí-los e foi como se fosse um feiticeiro a fazer encantos somente com os olhos...


* * *


Lembrou-se de que tinha aula. Lembrou-se de que tinha que vestir-se. Virou de costas para retornar segundos depois. Chegou a tempo de lhe pegar de saída. Já estava de costas. Fitaram-se mais uma vez.

Ele imóvel. Ela não. Foi tratar de vestir-se.

Sim, voltou. Mas quando voltou, ele já não estava mais lá.

Era um nômade, um errante, um cigano. Como ela. Aquela não era a sua casa. Como ela. Estavam os dois lá por acaso, por engano.

Estava atrasada. Tratou de correr. A passos rápidos pelo caminho ainda pensava nequela figura negra de olhos luminosos. Sentiu-se como se tivesse encontrado uma parte sua, olhar para ele era como olhar para um espelho. Baixou a cabeça. Checou o relógio.

"Aquele gato era eu".
E pegou o ônibus.

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