quarta-feira, setembro 22, 2010

Me Diceram

* * * 


Uma vez me disseram que ‘disseram’ escreve com dois ésses. Também me disseram que eu produzia melhores artistas do que obras e que eu deveria, primeiro, pisar com os pés nus no chão para saber se estava frio ou quente antes de assumir que o piso estava frio. Me disseram que eu fazia as coisas sem prestar atenção e que depois não lapidava. Me disseram que eu deveria prestar mais atenção nas coisas. Quem me disse isso, certamente, não estava prestando atenção em mim... Me analisou tanto que esqueceu de perceber a coisa mais importante: que eu presto atenção nas coisas, muita atenção, em (quase) todas as coisas. 

É bem verdade que meu carro é uma bagunça e que eu não dobro as roupas e coloco-as de volta no armário. É verdade que eu, muitas vezes, deixo a toalha molhada em cima da cama sem me dar conta e que minha ortografia é tão ruim que me renderia o direito de voltar à primeira série. Mas, se eu escrever diceram, alguém vai deixar de entender o que eu estava querendo dizer?

Não, eu não estava preocupada com a toalha molhada. Estava pensando em que roupa ficaria mais bonita, qual seria o melhor lugar para irmos, se a rua estaria cheia e se acharíamos lugar para estacionar. Estava reparando no movimento do músculo do teu antebraço enquanto tu segura o cigarro e tentando lembrar o nome do artista da imagem que estavas vendo. Eu estava pensando se tu ia gostar do meu perfume novo e, não, não reparei na toalha. Será que isto é suficiente para dizer que eu não presto atenção? Será que era eu que não estava prestando atenção? 

É verdade que raramente escrevo um texto pela segunda vez. Sabe por quê? Porque eu reparo nas vírgulas. Todos os textos de todos os livros que leio, leio com uma caneta na mão. Sublinho as frases, marco o que gosto com um ponto de exclamação, dobro a orelha da página para saber onde estava aquilo que eu gostei, repito várias vezes na minha cabeça aquela uma frase, daquele um autor e relaciono a frase com as mais diversas coisas que já vi, ouvi e senti. E então, quando eu escrevo essas linhas como quem psicografa, é porque eu não prestei atenção? 

Então de nada valem os 80 anos de Picasso se o gato for desenhado em 10 minutos? Será que você sabe do que eu estou falando ou vai achar que eu não fiz sentido? Se for esse o caso, te aconselho a olhar melhor. Olha mais. Preste mais atenção. O perfume novo não justifica o erro de ortografia e o nome daquele artista que eu não lembro não faz secar mais rápido o colchão molhado pela toalha. É... talvez eu não preste atenção nas coisas. Mas, sabe do que mais? 

Vamos de taxi porque hoje vai ter jogo e a cidade vai lotar e vamos pagar tanto no taxi quanto pagaríamos em estacionamento; e, como tu disse que estavas com fome, que tal irmos naquele lugar que tem lasanha? Dai podemos pedir aquele vinho que tu gostou da outra vez; e, já que vamos de taxi, vou de salto e com o vestido preto e já aproveito para estrear o perfume; essa imagem que entrou agora parece aquela que vimos na palestra daquele artista; o vizinho não para de gritar e isso me lembra que temos que dar comida pro cachorro; e a tua cara de brabo quando eu jogo a toalha e a maneira como o músculo do teu antebraço se mexe quando tu pega ela pra tirar da cama me encantam. Mas não, eu não devia estar prestando atenção.

Como é mesmo que se escreve ‘mexer’? 

6 comentários:

Gus Rosa disse...

Algo me diz que a gente é parecido.

Lia Kauffmann disse...

Algo me diz que amei o texto.

E tambem me sinto bem assim.
Bem.

Unknown disse...

Sweet.

Isis B. disse...

Muito bacana o texto. Aliás, quem prestaria atenção se "dicessam" ou "disseram"?
Conteúdo é fundamental.
Beijos,
Lady Clementine

... disse...

=)

Bom... diceram realmente é com dois ésses.
Não que não se entenda, ou que tire a magia do que se escreve... e não que a maneira convencionada por todos seja certa para transparecer aquilo que queremos...
não que a minha ortografia seja perfeita... o problema é que eu sou chato mesmo. até com o que eu não intendo e não devia.
O problema é que chão talvez não tivesse assim tão frio e tu pudesse ficar de pé um pouco mais do meu lado, sentado, quase na mesma altura.
E não interessa muito o molhado no colchão, mas eu tinha só três toalhas em casa...
Bom... uma vez um amigo me disse que eu falo uma coisa e acho que falei outra (ou quis dizer outra).
Sei que o pouco que digo é menos do que eu gostaria e muito menos do que os outros esperam.
Mas ta, falhas minhas a parte nesse ponto.
Pra ser sincero, o que mais me intrigava e oq eu não entendia era como conseguia prestar atenção na tela a ponto de se desapegar da própria roupa.
Quando descobri, a cara de"brabo" (que na verdade devia ser indagação) quanto a toalha ...sumiu.

Desculpa,


... Um belo texto =D

Bibiana Xausa Bosak disse...

Tentei não responder, mas acho que esse post merece alguns comentários:

Bom, tenho que começar dizendo que "entender" é com E. Chato somos todos, sabendo do que falamos ou não...

Depois vamos pela maneira convencionada por todos. É uma ótima observação. Quem sou eu pra julgar se ela é boa ou ruim, a melhor ou não, mas sei que é diferente da minha e isso me rende dores e preços a pagar...

E tem o chão... Não sei bem se estava frio, eu podia também usar meias, mas ei! Eu não sou TÃO baixinha assim. E, depois de tudo, o frio não me importava, eu poderia continuar ali, mas não fui eu quem foi embora.

Quanto ao molhado, eu teria adorado comprar mais toalhas. Linda e fofas, brancas e com conjuntos.. Se ao menos eu soubesse que esse era o problema. Mas, tenho que ser sincera: acho que não era.

Acho que entendi a última fase, mas tenho a impressão que faltou um "tanto" nela: tando a cara de brabo..quanto a toalha. Pelo menos foi assim que que fez sentido pra mim. E me ficou uma dúvida: seria um arrependimento ou foi só pela poesia?

De tudo isso, o que me saiu foi: Não há mais a toalha molhada sobre a cama. E com ela, o que mais se foi?

E, por fim, as roupas:

Mas há coisa melhor do que desapegar da própria roupa?